sábado, 15 de fevereiro de 2020

If

If a writer pudesse habitar meu mundo interno, teria muito a explorar, com certeza. Não em um latifúndio extrativista, mas num ambiente em que se encontram multidões, povos, nações de um território vasto e galáctico. Quero falar dessas travessias intensas, desse fluxo de discursos e práticas, da cultura que me entranha por tantos e tantos pensamentos, emoções, sentimentos, beleza (daquilo que é belo), questões filosóficas...

Como se fosse tudo muito simples e ao mesmo tempo muito complexo. Como se uma rede emaranhada em tantas conexões pudesse dar forma a uma estética fluida e permanente, numa forma palatável de se perceber e sentir. Para poucos ou muitos? Não sei. Talvez: seletos.

Um círculo, um cubo, um triângulo (porque a matemática não pode faltar), uma folha, uma flor, uma nuvem, uma gota d'água ou até uma lágrima, essa que escorre pelo meu olho esquerdo, enquanto outra cai um segundo e meio depois pelo meu olho direito. Esquerda, se a pessoa que me lê consegue partir de mim. Contudo, e se apenas me olha e quiçá me enxerga, será que saberá me ler?

Tal como um fluxo de pensamentos de (quem me dera) uma personagem lispectoriana, às vezes me pergunto: se eu fosse uma selecta lata de legumes, o que haveria de carregar na conserva?

Se eu acreditasse na imanência que a moldura de um quadro artístico carrega na parede, talvez eu fosse um poema de Drummond. Se eu acreditasse na transcendência, talvez a pergunta fosse outra. Se eu acreditasse na existência, talvez Sartre pudesse me explicar, muito embora só Simone de Beauvoir pudesse sustentar epistemologicamente aquilo que me torna uma mulher.

Eu queria mesmo era ser apenas natural. Extensão direta, conectada à Natureza. Conectada por sua raiz, expressão e linguagem. Na língua que se expressa pelo calor do sol, que nutre a vida e também seca a roupa colorida, molhada e estendida no varal. Que vem pela chuva que ferozmente  reage às intervenções antrópicas, ou pode simplesmente em brandas gotas refrescar e regar tudo, deixando o verde mais verde do que qualquer verde que se possa imaginar.

A estética da Natureza é sempre a mais bela que há. E nem adianta saber qual "artista" está por detrás da obra. Só é possível saber por crer. Na crença inabalável de quem sabe, sabendo sem precisar perguntar.

O fato é que estamos perdidos enquanto humanidade, se é que é possível acreditar na ideia de humanidade.

Eu, comigo mesma e Irene já começamos a rir sobre como tudo isso foi e onde vai parar. Chorar faz parte também. Só que, em conversa democrática com todas nós, incluindo outras personagens, decidimos mudar para a anarquia.

Eis a nossa resolução: se vamos coabitar este vasto e desordenado mundo, façamos um pacto para nossa jornada.

Não há por que ser feliz, essa imensa ilusão que nos vendem. Mas, mesmo diante do inexorável fim, apenas descubramos motivos que nos sustentem cada dia vivido.

terça-feira, 25 de julho de 2017

A luz que não se apaga quando chega a madrugada

Ah, este silêncio ensurdecedor aqui dentro de mim madrugada adentro. Está tão alto que não consigo dormir. Aquilo que fala pelo sentimento. Quem cala, sente. Sente aquilo que é mudo quando a gente quer mudar. A palavra muda. A gente planta, ela cresce, floresce e se multiplica à espera da colheita por entre tantos sinais de pontuação. Amadurecer dói. Haja sol, e chuva, e vento, e calor, e frio, e chuva, e sol, e frio, e calor, e vento, e vida até cair da árvore. Às vezes dá vontade de chegar no pessoal que inventou a sabedoria e dizer um grandiloquente: foda-se! Mas gritar ou escrever em caixa alta geralmente não adianta, pois pode machucar mutuamente; saímos sofrendo e ainda devendo perdões. Para si e para outrem. Foi a sábia dentro de mim que me ensinou e a aprendiz dentro de mim que me aprendeu. Vixe, reparei que perdoar tem o mesmo radical que perder. Perder a dor por se doar para ficar mais leve? Ora, nem me adianto em ir além dessas questões; em meio ao meu caos do aqui e agora, não tenho tempo para etimologia e filosofia baratas. Cadê o silêncio que estava aqui? Ah, nem soube se calar direito; eu o encontrei antes do 1,2,3, salve todos. Porque mesmo escrevendo rápido e sem filtros, na esperança de que ele possa fugir de mim, ele insiste em me existir sem me aliviar.


quarta-feira, 8 de maio de 2013

Mais uma da série: Eu mereço. Só que não.


Às vezes saio do trabalho com um cansaço que é fácil de se reconhecer. Já no ponto de ônibus, enfrento o tormento de uma cidade cotidianamente engarrafada e barulhenta. Enquanto aguardo o transporte, não entendo por que os ambulantes insistem em vender CD's na opção de demonstrar o produto no volume mais alto. Ok, penso eu, você está indo para casa, então relaxe. Tenho a sorte de sentar no transporte coletivo, mas logo sinto que ela se esvai, porque um suposto hit começa a ocupar todo o espaço sonoro do veículo, vez que um bonito sentado duas cadeiras à frente se acha um DJ de buzu. Nessa hora ele poderia lembrar pra que serve um fone de ouvido.

Você pensa, voltando para casa, que finalmente poderá descansar. Ledo engano. Minha vizinhança é bastante insistente em tentar entreter toda a comunidade ao redor, colocando músicas no áudio máximo. Não importa o dia da semana -- de domingo a domingo -- e, pior ainda, não importa a hora.

É uma salada musical. E não me levem a mal em falar mal. Independentemente de eu gostar ou não das músicas, o que incomoda, o que irrita profundamente é o barulho.

Eis que, hoje, o que invadiu forçosamente minha janela e meus tímpanos não é nada de novo. A vizinhança -- será alguém da terceira idade? -- achou de tirar do baú as canções imortalizadas por Altemar Dutra, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Sérgio Bittencourt, Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira, Herivelto Martins, Waldick Soriano e todo o pessoal da mais profunda fossa romântica...

♫♪♫ Sentimental eu sou, eu sou demais... ♫♪ Que queres tu de mim?... ♫♪ Aquele amor que sonhei... ♫♪ Boemia, aqui me tens de regresso... ♫♪ De noite, eu rondo a cidade a te procurar, sem encontrar... Volto pra casa abatida, desenganada da vida... ♫♪ Índia, teus cabelos... ♫♪ Cinderela eu sou... Cinderela, menina moça, coração a palpitar, que o seu príncipe encantado vai chegar... ♫♪ Adeus, amor, eu vou partir, ah, eu vou-me embora... você cortou o barato do meu amor, você mentiu, iludiu e me deixou por fora... ♫♪ Velho, meu querido velho... ♫♪ Hoje, que a noite está calma e que minh'alma esperava por ti... Volta, fica comigo, só mais uma noite... ♫♪ Alguém me disse que tu amas novamente... ♫♪ De que é feito afinal esse meu coração?♫♪♫

Tudo bem que, nessa época, nem tão distante assim, a música brasileira produzia uma seresta de responsa. Mas, uma coisa há de ser dita: esse playlist era quase como pedir uma dose certeira de cicuta para aplacar a dor no coração de um ser que padece de amor. Ô povo que sofre, meu Deus!


Capa do álbum de Francisco Alves, "O cantor eclético". Qualquer semelhança não é mera coincidência.

(Imagino que, neste momento, aquele que conhece os supracitados e verdadeiros artistas da fossa estará se perguntando numa epifania reveladora: quem é Pablo na tabela periódica da paixão?)

Já tive, inclusive, meus momentos de ouvir Dolores Duran, Nana Caymmi e Maria Bethânia para aplainar dor de amores. Não vou mentir que, se por acaso houvesse uma cervejinha e se alguns amigos (eles sabem quem são) estivessem em minha casa, poderíamos compartilhar da dor do vizinho, rir, chorar e sofrer juntos, reclamar aos ventos sobre a vida e o mundo, tudo isso sem ter que recorrer ao Facebook para postar piadas, revoltas, indiretas e outras mesmices.

Para mim, o ponto positivo ao escutar as letras das composições tocadas é poder perceber que, na arte de lidar com a dor, não falta criatividade e assunto na música brasileira. No entanto, o ponto negativo é que, recortando um trecho do rei Roberto Carlos, "todos estão surdos", porque ainda falta ao ouvinte aprender a abaixar o volume no dial. Pois, nessa hora, quem acaba sofrendo mais sou eu...


sábado, 20 de abril de 2013

Rir para não chorar ou, se for para chorar, vamos beber.

Nosso Brasil é um país único, singular, idiossincrático, penso eu. Nossas tentativas de mudança para um estado realmente democrático de direitos sempre trazem enormes falhas, mas a gente continua otimista. Na maioria das vezes, torcendo e brigando por nossos times de futebol, questionando os altos preços dos smartphones, acreditando na publicidade, depreciando verbalmente nossos representantes eleitos, compartilhando indignações nas redes sociais etc. Tudo porque somos brasileiros e não desistimos nunca. Para mim, algo de um esquema: "rir para não chorar" ou "se for para chorar, vamos beber".

Explico. Nesta semana, eu ouvi uma delegada em palestra justificar o porquê de a delegacia pela qual responde ficar com as portas fechadas à noite: gente, é falta de segurança, pois só há dois policiais no plantão. Hã? E hoje eu acabo de assistir à reprise de um programa de televisãocuja pauta era "segurança privada", focando a discussão sobre o crescente número de arrastões nos restaurantes paulistas. Neste, o entrevistado falava, ou melhor, vendia um pacote chamado "kit arrastão", no qual o restaurante (ou qualquer pessoa física contratante) pode dispor de um "botão de pânico", que, diante de uma situação de assalto e roubo, ao ser acionado, contacta imediatamente uma equipe de vigilância remota, sempre alerta e à disposição para um pronto atendimento... 

Conforme concluiu ironicamente um dos componentes da mesma mesa em que a referida delegada participou, daqui a um tempo será solicitado ao secretário de segurança pública que contrate segurança privada para as delegacias e outros serviços públicos por falta de segurança.

Tirem suas próprias conclusões. Eu ri para não chorar.

De outra parte, quando estou em casa, não muito raro escuto os ecos sonoros das escolhas musicais da vizinhança. Às vezes alto até demais, invadindo meus ouvidos de maneira violenta, isto é, desrespeitando meu direito de silêncio. Porém, o que mais me intriga é que geralmente são músicas de conteúdo apaixonado, aquele sentimento de dor, saudade, sofrimento, como uma pena autoinfligida. Nada contra. Obviamente, tem quem goste de sofrer. Mas o que é que isso tem a ver com o assunto acima?

Você nunca se perguntou por que se vende tanta música de dor, paixão não correspondida, traição e outras mazelas do coração? Já eu, de tanto escutar a dor alheia no consultório, ou mesmo pelas insistentes músicas que atravessam a janela de minha privacidade, tenho me feito essa questão com frequência.

Trata-se de uma pergunta de amplo espectro e, de igual mandeira, assim são as respostas possíveis. Por isso, eu já associei a mil coisas, embora todas elas sempre atinentes à nossa realidade brasileira - globalizada? -, tanto em âmbito individual quanto social. No entanto, o recorte que  quero trazer aqui é mais social; leia-se: fenômenos de massa. 


Faça chuva ou faça sol, à espreita de nosso drama, alcançando a luz de uma sombra muito maior, sempre estará um crooner romântico. Qual seja o estilo musical, o intuito é, para além da arte, movimentar a economia da ilusão. Se o pacote vier com cerveja, então, melhor ainda. Basta prestar atenção nas letras das músicas. Não à toa, as cervejarias são os grandes patrocinadores por detrás de shows, festas e eventos nos quais tais artistas sertanejos, axezeiros e astros do pop são as estrelas principais; isso sem falar nos estádios de futebol, mas deixemos essa parte para lá. 

O que todos sabem é que a gente se anestesia ao ingerir álcool, alterando a consciência e criando realidades paralelas à nossa existência cruel e difícil, seja horizontalmente por um amor não correspondido, seja pela dominação vertical de um poder financeiro/econômico de grandes entidades (públicas e privadas). E estas dão sempre um jeito de colocar nossos direitos em patamar inalcançável à maioria da população. É evidente que contam, por tabela, com a nossa participação apaixonada, alienada, passiva e omissa no processo.

E voltamos ao círculo vicioso, que tem a ver com manter nossas situações absurdas, tal como a relatada no início deste texto. Quem não se lembra do sarcástico Renato FechinePor essas e outras razões que, se for para chorar, vamos beber, porque o costume é escolher o caminho mais fácil e suportável. 

Mas tem de ser sempre assim?



sábado, 25 de agosto de 2012

Os eus de um McDonalds mais perto de você.

Era por volta da hora do almoço e eu acabara de chegar a Salvador, voltando de Ilhéus, junto a uma querida amiga, após três dias de comemorações do centenário de Jorge Amado. Estávamos ainda encantadas pelo violão poético de Caetano e pela cachaça sonora dos sons, verbos e brisas que vinham da Família Caymmi. Sem contar a tarde de domingo, que engoliu a noite ébria em batuques e vozes molhadas, tocando samba, mpb, rock, folk e modas de viola das melhores safras musicais! Tudo foi, de maneira concisa, flutuante demais...

Naquela segunda-feira ensolarada, em um tedioso engarrafamento, nós suportávamos - famintas - a constatação de que era preciso voltar imediatamente ao mundo urbanoide do cotidiano soteropolitano:

- Vamos almoçar no McDonalds!

Sóbrias e decididas, rumamos à lanchonete mais próxima. 

Na mesa ao lado, três prováveis estudantes de ensino médio: duas meninas e um menino. Ouvindo em recorte, eles conversavam em modo de confissão, declarando confidências em alto e bom som. Pelo tom das vozes, pude notar a  felicidade deles por haver diante de si espelhos da sua loucura mais íntima. Uma  das meninas continuou o assunto:

1: - Ai, que bom encontrar alguém que seja tão louco quanto eu. Vocês também sabem que, quando eu vejo um número, eu só penso em sexo, ou se ele é masculino ou feminino?

2: - Eu também! Por exemplo, o seis é uma mulher grávida!

1: - O cinco é homem.

3: - E o oito é uma mulher gordinha.

1: - O oito eu não consigo definir!

3: - Com aquela cintura e aquele bundão? Tá na cara que é mulher!

2: - Vai ver é "sapatão"?

1: - É, pode ser...

2: - Mas o seis, definitivamente, é uma mulher grávida!

Eu quase engasgava e não conseguia mastigar o sanduíche. Segurei a respiração para não rir em voz alta, ao mesmo tempo em que achava tudo muito interessante! 

Pois, ao lado do devaneio alheio, logo ali, estava eu engolindo a cultura capitalista ao molho cheddar, depois de respirar a voz rouca e linda de Nana Caymmi. Eu, que por aquela chuva pude sentir a emoção das entidades que moram nas nuvens. Eu, que me sentia nós, ao sorrir empaticamente por olhos de conhecidos e desconhecidos que se encantavam por aquela oportunidade musical e cultural única. Eu, que ouvira "canções pra caminhões de guitarras e coros" e batucara na mesa plástica, alternando entre goles e sorrisos. Eu, que sambei sem tirar o pé do chão, embora a alma estivesse solta ao "vento ateu". Eu, que queria "passar uma tarde em Itapuã", mas só me restava aquele resto de batata frita. Eu, com minha poesia e filosofia barata de mesa de Barrakitica! 

Eles lá, expondo suas fantasias mais esdrúxulas - como quem atualiza status no Facebook sem vergonha ou qualquer preocupação com julgamentos, desde que haja muitos "curtiram". Eles sendo seus eus, na hora e na vez da juventude, em suas mesas de fórmica com cheiro de fastfood. E eu aqui, que não sei ao certo se "amo muito tudo isso", querendo manter a viagem acesa na memória. Logo eu, que tento expor de modo lírico e sarcástico os assombros de uma pessoa que trilha com perplexidade e espanto os caminhos da misteriosa vida humana.

A gente nunca imagina o que nos espera em um lugar que poderia ser qualquer esquina do mundo. 




quarta-feira, 18 de julho de 2012

Dez anos em doze ou "Não vou jogar meu destino contra o seu num filme piegas sem sal"


Outro dia ouvíamos uma música francesa tocando na rádio que costumamos sintonizar. Ele me perguntou:

- Quem cantando aí?

Alguns segundos viraram quase minutos:

- Eu sei... é... pera... é Charles Aznavour! Lembro que lá em casa tinha um disco dele. Mas por quê?

Rindo, ele me disse:

- Oxe, porque você tinha a obrigação de saber! Esse é 'clássico'!

Foi então que resolvemos inventar o teste (ou seria uma brincadeira?) que nomeamos “Responda ao Quiz-Trívia para saber se você vai ficar comigo”...

Ele: - Quem é João Gilberto?

Eu: - Você gosta de matar traça?

Ele: - Diga o nome de cinquenta cantoras brasileiras.

Eu: - Você gosta de fazer cafuné?

Ele: - Qual o nome do crítico musical mais chato do país?                                                

Eu: - Você gosta de Wim Wenders?

Ele: - Gil ou Caetano?

Eu: - Então você toca Clichê do Clichê?

Ele: - Qual o nome da primeira música que tocou nas rádios?

Eu: - Você gosta de João Cabral de Melo Neto?

Ele: - Recite um poema de Waly Salomão.

Eu: - Você gosta de cerveja?

Ele: - Quem é o principal parceiro de Michael Sullivans?

Eu: - Você gosta de Matisse?

Ele: - Quem compôs as Bachianas Brasileiras nº5?

Eu: - Você gosta de mim?

Diante de abastadas referências, eu reviro diariamente o baú de tudo em mim, por onde eu fui e de onde eu vim. Diante de minha simples-embora-complexa existência, ele só teve de responder que sim.

E já são dez anos em doze, entre encontros e desencontros. Mas a brincadeira (ou seria um teste?) nunca tem fim...



................................................

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Pedestre ou motorista?

Hoje pela manhã, num programa de rádio, houve muitas reclamações contra a recente instalação de um semáforo localizado em uma cidade circunvizinha a Salvador. Pessoas se queixavam do longo engarrafamento provocado pela mudança ocorrida no tráfego, descerrando todo tipo de agravo à prefeita de lá.

O engraçado é que nenhum pedestre ligou reclamando. Imagino que, de algum modo, a instalação tenha sido em benefício destes. Até porque, que eu entenda, políticas públicas são prioritariamente voltada às pessoas, e não para os carros. Porque antes de ser motorista ou ter um carro, todo mundo é pedestre. E antes de ser pedestre, todo mundo é cidadão. Mas a gente se esquece disso.

As mesmas pessoas que criticam a crise de valores pela qual passamos são as primeiras a reclamar em favor próprio, isto é, em favor de suas máquinas. Exemplo é que, numa das ligações, ao se queixar dos desgovernos públicos ante a mobilidade urbana, um ouvinte relatava a dor que ele sentia, e ele disse assim mesmo - "como dói" -, quando o carro novo dele passava por um buraco.

É que o cidadão é a própria máquina, coisificado pelo capital, que inverte a lógica e nos desumaniza, fazendo com que o sentimento de existência venha pelos objetos. Objetos que supostamente nos fazem ser sujeitos. Objetos que nos conduzem às queixas como consumidores insatisfeitos, apenas consumidores. Mas a gente se esquece disso.

Haja esforço para se manter humano, demasiadamente humano. Também quero exercer a cidadania; vamos tentar? Talvez, na situação de motorista, eu ficaria p... da vida. Só que compreendo muito bem como é o risco de atravessar na faixa de pedestre, abaixo do redundante semáforo vermelho a indicar nosso direito. Pois, ainda assim, motoristas vêm desgovernados, apressados e cheios de si, empoderados pelo ronco de seus enfurecidos motores.

Aprendemos desde criança a olhar para os dois lados ao atravessar a rua. E por que não aprendemos a olhar para os dois lados diante de um fato? Nunca se sabe quem vem de lá, mas podemos imaginar como é estar na pele do outro. Nesse caso, aquele sujeito-pedestre ali, que precisa caminhar até a próxima calçada, em seu digníssimo direito, talvez tendo a mesma pressa que você para chegar ao local de trabalho e, enfim, bater seu ponto são e salvo. Mas a gente se esquece disso.



.....................................................................................